"Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e
paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas
horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me
habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a
vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo
esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei –
nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu
ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este
espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o
para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final.
Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas
perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os
homens que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por
exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa de Oliveira, um chapéu
alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e
alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados
e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a
mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O
homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte.
De dor também."