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註釋

 APRESENTAÇÃO

Livres feito corvos

Caetano Veloso dedicou-lhe uma oração. O Corvo de Edgar Alan Poe é o tempo? O relógio do sul libera o povo boliviano de um tempo que não é seu. A questão do tempo é tema que perpassa o imaginário do humano. O tempo funciona como local de morada do homem e da mulher, assim como, funda no mundo nossa possiblidade mesma de ser-com-o-outro. O tempo distingue o humano do deus. Funda nossa finitude. Permite fazer com que nosso tempo seja o último. Entrega ao abismo nossas aspirações. Conduz para dentro de si nossa identidade. Funda nossa singularidade. O tempo é subjetivo. Na presença do ser amado ele voa, na ausência ele para. O tempo nos informa do sol, da chuva e das suas consequências em nossa existência. O tempo, esse mesmo conjugado. O tempo verbal que conduz nossos olhares para ontens e amanhãs, mas que fatidicamente sempre nos recorda que o agora é o que nos obriga à existência.

Esse “compositor de destinos”, portanto, é a nossa própria condição enquanto humanos. O Ser é tempo. Nesse sentido, toda nossa possibilidade está em nos reconhecermos enquanto seres finitos e que caminhamos, a partir de cada pedaço de tempo inscrito e escrito, para nosso fim. Nisso reside nossa condição de seres para a morte. Tragicamente nossa existência vem enredada pela teia do tempo. Nela nos embalamos. Nela nos recriamos. Transcendemos nossa existência. Criamos o tempo. A transcendência, esse olhar do humano para si que o faz saltar adiante é ela mesma a sua própria inscrição no cosmos. Assim, a cada olhar lançado para si mesmo, para seu próprio tempo, o humano inaugura uma nova face que a partir de então funda sua própria determinação.

Podemos perceber, portanto, que o humano, enquanto ser-no-mundo, é uma construção do tempo. Constrói o tempo e ao mesmo tempo é esculpido por ele. Como dito, tragicamente estamos obrigados ao tempo. Sem ele não há humano. Sem o humano, também o que seria o tempo? É dentro de uma relação ambivalente entre criador e criatura que se coloca a questão do tempo. Procuramos medi-lo a todo custo, mas em verdade, enquanto ponteiros de relógio, conseguimos apenas dizer do que passou e do que virá, mesmo assim, de maneira precária. Ora, o que o relógio supõe é apenas o rastro daquilo que foi vivido. O fio do tempo escorre pelos seus próprios ponteiros, e como nos ensina Gessinger: “cada vez que gira, o ponteiro gira”. Assim, enquanto ponteiros, estariam também os relógios envelhecendo? Seria possível olhar pra trás e encontrar o passado sem que estivesse nele inscrito nossa facticidade presente? O ontem é um amontoado de hojes? O amanhã não carrega nossas pretensões? Seria o amanhã apenas nosso próprio método? Ou ao contrário, a roda trágica da fortuna não nos deixa armadilhar o ocaso?

Assim, a refletir acerca do tempo estamos já a construí-lo, estamos já a sermos consumidos por ele. Chronos, esse deus que devora seus próprios filhos. Mas ao mesmo tempo, vive por eles. Não existe sem eles. Nesse sentido, interessante notar a atitude do governo boliviano de alterar o relógio em seu país para que pudesse girar para o sentido que não aquele determinado desde sempre pela cultura do norte. Essa ideia altera, portanto, a própria perspectiva de tempo, e assim, permite uma nova subjetividade. O tempo, esse rei de Caetano Veloso, sem dúvida, está relacionado com a própria inauguração do humano no mundo. Logo, quando o governo boliviano modifica a estrutura do relógio, modifica também a própria subjetividade do povo de seu país. Essa atitude está ligada necessariamente à ideia de que a construção ideológica do humano se dá no tempo. Assim, pode sê-lo um forte aliado para a liberdade ou para a opressão.

Um dos fundamentos da ideia do estado plurinacional está em perceber uma perspectiva que desloca o centro do pensamento como sendo o mundo europeu. Em verdade, não há mais que se discutir acerca de centro e periferia. Colonizador e colonizado. Dentro dessa nova subjetividade que vem mostrada na figura do próprio relógio do sul, apenas reconhecemos que a construção do humano se dá no tempo e para uma existência que não se queira inautêntica, a direção do tempo deve ser liberta. Assim, se o tempo seria essa nossa tragédia. Esse inevitável que nos assombra como o corvo de Alan Poe, não poderíamos deixar de inscrever nele nossa própria identidade. Pois, parece-nos incoerente dizer que o humano se dá no tempo e admitirmos que o tempo, que forja o humano, é uma imposição cultural. A subjetividade depende do tempo, o tempo nasce dentro dela. Essa a percepção dos povos do sul quando assumem uma identidade calada pelo pensamento colonial. Essa identidade, portanto, é uma construção do tempo, nesse sentido, alterar os ponteiros é alterar a própria subjetividade. Não se trata apenas de uma figura retórica, o tempo é ele o embalo que conduz os passos do humano. Seria nessa toada que Caetano Veloso proporia ao tempo um trato. Um acordo legítimo que não viesse de maneira heterônoma em forma de colonização, pois que “És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho”. Essa percepção de que o tempo teria a cara do próprio filho interessa diretamente a essa nova dimensão do estado plurinacional. Ora, deixar vir o tempo é ao mesmo tempo cria-lo e não deixar-se colonizar pelo tempo do norte. Para que o trato se realizasse, seria necessário, portanto que a cópula dos pais fosse livre e legítima. No tempo deles, posto que o amor tem tempo próprio. Talvez o mais subjetivo dos termos. O tempo do amor. Para nascer filhos do sul. Tempos do sul. Há na canção de Caetano uma verdadeira relação de amor com o tempo, pois, “és um dos deuses mais lindos / tempo, tempo, tempo, tempo”. Para fazer acordos é necessário que estejamos no mesmo tempo. Não há acordo, tampouco amor na imposição. O tempo do estado plurinacional necessitou ser rearranjado para que os humanos ali pudessem de novo sentir o aroma dos povos que os antecederam. Para que os humanos ali pudessem viver de maneira autêntica seus amores. “De modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido / Tempo, tempo, tempo, tempo / E eu espalhe benefícios”. A inauguração do novo tempo agora é condizente com a tragédia que é o tempo em nós. Ao mesmo tempo, a fundação dos estados plurinacionais inaugura um novo tempo. O tempo da fecundação plural que deixa para trás a imposição dos ventos do norte. “Os ventos do norte não movem moinhos”. Cantaria Ney Matogrosso anunciando que no sul o andar é outro. Também olhar. A forma de estado não poderia passar inerte. Um tempo próprio é uma maneira de não violentar os povos originários.

Quando o corvo de Alan Poe bate à porta do solitário homem, é como o tempo a bater a porta do humano. Ele irá entrar. Se acaso não abrirmos a porta, mesmo assim, ele estará enquanto presença ausente em nós. A figura do tempo é assim como o corvo. Presente nos altera. Ausente, também. Ele está ali. Estará amanhã. Em forma de tragédia. Assim, na perspectiva do estado plurinacional, esse corvo que é o tempo, agora voa para o lado do sul. Não está desde sempre aprisionado na gaiola do sentido horário. O corvo do sul voa para outro lado. Ele não está equivocado. Ele apenas diz de outros tempos. O tempo não poderia ser aprisionado pela ideologia do norte. O vento no sul sopra de maneira distinta. Isso já seria motivo para essa alteração.

Há uma lenda na qual Hugin e Munin, os corvos de Odin, à noite se sentam ao lado de Odin para contar o que viram. Hugin é o pensamento. Munin é a memória. Cada povo possui seu Hugin e seu Munin. O tempo é dado na medida de sua construção, da memória. Do que é lembrado e do que é esquecido. Cada povo possui o seu espírito. O seu modus de pensamento. Logo, como dizer da liberdade de um povo sem que esteja livre para construir seu pensamento a partir de si próprio. O sul possui seu Hugin e seu Munin ou eles são aves que nos observam para ao anoitecer levarem a informação ao colonizador? Se estamos livres, temos tempo. Se não há liberdade para a pluralidade dos povos do sul, não há tempo, não há pensamento, tampouco podemos fazer memória daquilo que não nos compete. Hugin e Munin são as aves necessárias para que exista uma subjetividade autêntica.

A obra que agora apresentamos é fruto de um tempo muito particular. O tempo da Iniciação Científica Plurinacional, que contou com o intenso trabalho de seus participantes, dos que publicam aqui seus textos, mas também de outros que não puderam publicar seus textos mas que também mudaram seu tempo para que esse trabalho fosse possível. Essa publicação envolve discentes da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, que com afinco e liberdade de espírito construíram textos dignos de apresentação para a comunidade acadêmica mundial. O tempo agora é plural. O estado plurinacional alberga a diferença, rompe, a partir do relógio do sul, com a própria barreira ideológica do tempo.

Essa obra é um trabalho de libertação. Do tempo do sul. Rei e senhor dos destinos. Do pensamento dos participantes da Iniciação Científica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, que representada pelo seu coordenador geral Emerson Luiz de Castro, abre as portas para toda a comunidade profissional e acadêmica para mais uma publicação vanguardista que contempla desde o Direito Constitucional, Ciência Política, Filosofia, Direitos Humanos, Direito Penal, e perpassa de maneira interdisciplinar questões de gênero e de Direito do Trabalho. A obra conta com a participação de alunos de outras instituições, mostrando o espírito agregador necessário à pesquisa, bem como, alberga a participação de ex-alunos como o professor Rafhael Lima Ribeiro que figura como coorganizador da obra. É inevitável agradecer ao professor José Luiz Quadros de Magalhães, que em tardes outonais nas aulas do doutorado, apresentou-me a esse novo tempo, plural.

É hora de ver quem nos bate à porta. O corvo já desde sempre estivera ali. O tempo é nossa moldura. Não vivemos sem ele. O tempo é a própria soleira por sob a qual vivemos. De lá o corvo espreita. Ele produzirá a sombra por onde iremos caminhar. Que aquilo que ele fizer de nós seja em algum momento aquilo que um dia decidimos. Ora, sabemos pouco do tempo. Ignoramos sua forma. Sabemos apenas que é nossa tragédia. A ele estamos condenados. Para ele iremos nos doar. Nele iremos nascer e viver. Nele o estado plurinacional lançou novas cores, uma nova direção, resta agora saber para onde esse corvo irá...

“Profeta”, disse eu, “profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.”

Bernardo G.B. Nogueira